Por Larissa Rosevics
Com a redemocratização no Brasil, as políticas públicas
passaram por um período de revisão, redefinição e readaptação ao novo contexto
nacional. Em democracias representativas, as políticas públicas devem (em tese) resultar
de intensa interação entre os diferentes atores políticos e sociais, que buscam estabelecer princípios norteadores para a implantação de ações e medidas de combate à problemas
específicos da vida nacional. A área da Defesa foi aquela que mais tardiamente
retomou seus rumos a partir dos princípios da participação democrática. Por
Política de Defesa, entende-se como sendo toda política pública, com ênfase na
expressão militar, que busca defender o território, a soberania e os interesses
nacionais contra ameaças preponderantemente externas, potenciais ou manifestas
(ALMEIDA, 2010; LIMA, 2010).
O processo de redefinição e revisão da área de Defesa deve-se
a três contextos: o contexto nacional de redemocratização, de perda da
preponderância política das classes militares e da necessidade crescente de
ampliação da participação dos diferentes atores políticos e sociais nos
processos decisórios das políticas públicas nacionais; o contexto regional, com
as consequências da Guerra das Malvinas e do descrédito por parte dos militares
e políticos brasileiros para com o esquema de solidariedade hemisférica
defendida pelos norte-americanos; e o contexto internacional do fim da Guerra
Fria e a prevalência econômica, política e militar dos Estados Unidos no
sistema internacional. Tais contextos influenciaram a institucionalização e
normatização contemporânea da área de Defesa no Brasil, especialmente a partir
do final da década de 1990.
Mudanças conceituais e históricas
Durante os anos de Ditadura Militar, prevaleceu no Brasil como
norteadora das políticas de defesa a “Doutrina de Segurança Nacional”, que
tinha por princípios: a) o foco na ameaça interna, com o estabelecimento de uma
agenda de combate aos considerados “subversivos” e aos comunistas e; b) a
confiança na solidariedade hemisférica, relegando aos Estados Unidos e ao
Sistema Hemisférico de Segurança (tendo o TIAR como expressão máxima) a
proteção às ameaças externas. Essa Doutrina foi desenvolvida por uma elite
intelectual ligada e/ou parte das Forças Armadas (especificamente da ESG), sem
que se estabelecesse um amplo debate nacional sobre o tema com os diferentes
grupos políticos e sociais.
No início da década de 1980, a posição dos Estados Unidos de
não apoiar a Argentina no confronto contra os ingleses na Guerra das Malvinas
gerou, segundo Francisco Carlos Teixeira (2012), uma sensação de descrédito por
parte da elite militar nacional em relação ao Sistema Hemisférico de Segurança.
Tal fato levou os militares brasileiros no governo a perceber a importância de
um pensamento estratégico de defesa nacional autônomo e centrado na América do
Sul.
Na busca por novas estratégias de defesa nacional, os
militares brasileiros procuraram: aproximações entre Brasil e Argentina em
busca da superação das rivalidades regionais; priorizar o controle e a preservação da
região amazônica, através da construção de arranjos cooperativos regionais com
os demais países da região; estabelecer formas alternativas de acesso à
tecnologia de ponta, especialmente nas áreas de informática; e reivindicar a
ampliação do mar territorial brasileiro junto à sociedade internacional. Com a redemocratização no país no final dos anos de 80 e início dos anos 90, tais estratégias foram revisadas e aprofundadas, ainda que não tenha sido estabelecida uma política clara em relação a Defesa no país.
Nos primeiros anos pós Guerra Fria, a euforia provocada pela
“vitória” do capitalismo, promoveu uma visão de mundo em que as
ameaças tradicionais à Segurança Internacional haviam sido superadas,
provocando uma significativa diminuição dos gastos militares pelos Estados e,
consequentemente uma diminuição da importância das Forças Armadas. Na América
Latina, a pressão internacional, especialmente por parte dos Estados Unidos,
era para que os países da região repensassem o papel de suas Forças Armadas,
especialmente no combate as novas ameaças à Segurança Internacional, como o
narcotráfico, o crime organizado e o terrorismo. Apesar de fragilizadas, as
instituições militares nacionais mobilizaram-se para evitar o que consideravam ser
a transformação dos exércitos em policiais.
As tensões geradas pelas mudanças nos contextos nacional,
regional e internacional influenciaram a tardia retomada dos debates da área da Defesa na década de 1990. A partir de Alsina
Jr (2008) e Eliezer Rizzo Oliveira (2009), é possível destacar três outros motivos que dificultaram o debate nacional em relação a área: 1) a grande
autonomia que as Forças Armadas adquiriram em relação ao processo decisório da
área de Defesa, resultante dos anos de ditadura militar e reforçada pelo não
estabelecimento pela constituinte de um Ministério único, subordinado ao poder civil; 2) o baixo interesse da opinião pública nacional sobre
os temas de defesa, tradicionalmente associados aos militares e vistos com desconfiança, bem
como a baixa relevância dada aos gastos da área, entendidos como desnecessários frente às necessidades
de outras áreas, como de saúde e educação; 3) a sensação de otimismo pós Guerra
Fria através da visão de mundo de desaparecimento das possibilidades de
grandes conflitos entre Estados, em que América do Sul caminhava rumo a ser
considerada uma Zona de Paz e o sistema internacional a uma governança
global.
Eixos normativos e institucionais da Defesa no Brasil
Em 1994, a Secretaria de Assuntos Estratégicos do Governo de
Itamar Franco lançou o documento “Bases para uma política de Defesa”. O
documento, de caráter declaratório, tinha o objetivo de estimular o debate
nacional sobre a temática, sendo o primeiro documento oficial produzido pelo
governo brasileiro pós-democratização sobre a área da Defesa.
O documento teve repercussão suficiente para que o candidato
governista à presidência da República, Fernando Henrique Cardoso, se
comprometesse com a criação do Ministério da Defesa. O primeiro documento
normativo denominado Política Nacional de Defesa (PND), foi publicado em 1996
durante o governo de FHC, como parte das negociações para a constituição do
Ministério da Defesa. À pedido da presidência, o documento foi elaborado em
conjunto pelas lideranças das Forças Armadas, do Itamaraty e do poder
executivo, tendo sido pensado como um documento público com objetivo de
proporcionar um quadro de referência comum as três forças armadas, que desenvolviam até
então suas atividades de maneira isolada e desconexa.
A concepção de Defesa face ao novo contexto pós Guerra Fria
era uma das preocupações do Governo de FHC. A política externa e a política de
defesa, como duas políticas públicas voltadas para a área internacional,
deveriam compartilhar a mesma visão de mundo e os mesmos princípios na
elaboração de suas estratégias externas. Para Alsina Jr (2003), o PND de 1996
representou uma síntese imperfeita entre a política externa e a política de
defesa no Brasil, tendo como resultado uma concepção de política de defesa de
caráter dissuasório, defensiva e que descarta a guerra de conquista.
A criação do Ministério da Defesa, em 1999, não alterou
substancialmente a estrutura das relações de poder entre as Forças Armadas e a
sociedade brasileira, ainda que este tenha sido um dos principais motivos para
a sua criação e um dos objetivos do PND de 1996. A modificação institucional
também não resultou na elaboração de uma política de defesa renovada, mesmo com
a ênfase na necessidade de proteção e monitoramento da Amazônia e do Atlântico
Sul, bem como a participação das Forças Armadas brasileiras nas Missões de Paz
das Nações Unidas (ZAVERUCHA, 2005).
A Política de Defesa Nacional (PDN) de 2005 é resultado de
uma proposta elaborada pelo poder executivo do Governo de Lula da Silva em que
os eixos temáticos da política de defesa anterior foram reforçados, bem como o
conceito de dissuasão para as ameaças externas e a subordinação das Forças
Armadas ao poder civil. A principal inovação do Governo Lula foi a aprovação da
Estratégia Nacional de Defesa (END) em 2008. Com a função de estabelecer ações
e medidas concretas para a aplicação da PDN, a END é composta por três eixos
centrais: 1) a organização das Forças Armadas em território nacional; 2) o
reequipamento militar e a reestruturação da indústria de defesa; 3) a
composição das tropas e a mobilização das Forças Armadas. A ênfase principal do
documento é em associar as estratégias de defesa nacional às estratégias de
desenvolvimento do país, com destaque aos setores aeroespacial, cibernético e
nuclear.
No ano de 2012, o Governo de Dilma Rousseff sancionou a lei
12.598, que estabelece o “Regime especial tributário para a indústria de
defesa”, um marco regulatório importante para as empresas do ramo, com incentivos fiscais
temporariamente estabelecidos para a promoção da indústria de defesa nacional. Em
busca de maior transparência para a área, em 2013 o governo brasileiro publicou
o Livro Branco da Defesa, que contém toda a estrutura militar brasileira, tanto
de pessoal quanto de armamento, bases militares e projeções de aquisições.
Avanços e limitações da área de Defesa no Brasil
A redemocratização não deve
se restringir ao processo eleitoral, devendo ser franqueada a sociedade o
debate em relação a todos os setores da vida política nacional. Contudo, na primeira metade da década de 1990, o governo brasileiro foi apático e inoperante com relação à área da Defesa. Os principais avanços para a superação da visão limitada da área da Defesa como de domínio
quase que exclusivo dos militares, só ocorreram a partir da segunda metade da década de 1990. Além da criação do Ministério da Defesa e dos documentos citados, a criação da
graduação em Defesa e Gestão Estratégica Internacional pela UFRJ em 2010, também
exerce papel fundamental para a ampliação dos debates dos temas da área, através da formação de profissionais civis especializados.
Em relação a questão da democratização da área de Defesa,
ainda persistem certas limitações. Os documentos e medidas elaborados até o
momento tiveram suas origens a partir de iniciativas do poder executivo, sem
que houvesse um amplo debate nacional promovido pela sociedade e pelo Congresso
nacional. O baixo interesse pelos temas da área, ainda vistos como pertencentes
exclusivamente aos militares por alguns setores da opinião pública, tende a induzir os
parlamentares a não conferirem a devida atenção aos debates sobre Defesa,
considerados pouco eficientes para angariar votos.
Por estarem relacionadas ao mesmo espaço, o internacional,
as políticas externa e de defesa precisam necessariamente manter um diálogo
constante. Contudo, tanto no Itamaraty e quanto na Caserna determinados grupos
ainda são resistentes ao diálogo e a adoção de uma visão de mundo em comum.
As normas brasileiras ligadas à área tendem a confundir
Defesa com conceitos ligados a Segurança como
desenvolvimento, combate a pobreza, proteção ao meio ambiente, dentre outros.
Falta ao Brasil uma definição renovada e democrática de Segurança Nacional, que
supere definitivamente a Doutrina de Segurança Nacional editada pelos militares
e contribua para a consolidação da democracia no país. O estabelecimento de uma
nova concepção de Segurança Nacional poderia diminuir as ambiguidades presentes
na Política e na Estratégia de Defesa, bem como ampliar o interesse da sociedade pelos temas da área.
Referências
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considerações do ponto de vista das políticas públicas. Opinião Pública,
Campinas, vol.16, n.1, jun.2010.p.220-250.
ALSINA JR, João Paulo S. A síntese imperfeita: articulação
entre política externa e política de defesa na era Cardoso. Revista Brasileira de Política Internacional,
vol.46, n.2, Brasília, 2003. Pp.53-86.
___________. Dez mitos sobre defesa nacional no Brasil. Revista Interesse Nacional, v. 1, n. 3,
2008, pp. 68-77.
LIMA, Maria Regina Soares de. Diplomacia, defesa e a
definição política dos objetivos internacionais: o caso brasileiro. In: JOBIM,
Nelson; ETCHEGOYEN, Sergio; ALSINA, João Paulo (org). Segurança Internacional: perspectivas brasileiras. Rio de Janeiro:
FGV, 2010.
OLIVEIRA, Eliezer Rizzo. A Estratégia Nacional de Defesa e a
reorganização e transformação das Forças Armadas. Interesse Nacional, São Paulo, ano 2, n.5, p.71-83, abr./jun. 2009.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. Política de defesa e
segurança do Brasil no século XXI: um esboço histórico. In: : SILVA FILHO,
Edilson da; MORAES, Rodrigo Fracalossi de (org.) Defesa Nacional para o século XXI: política internacional,
estratégia e tecnologia militar. Rio de Janeiro: Ipea, 2012.p.49-81.
ZAVERUCHA, Jorge. A fragilidade do Ministério da Defesa
brasileiro. Revista de Sociologia
Política, Curitiba, n.25, p.107-121, nov.2005.
Graduação em Defesa e Gestão Estratégica Internacional
(UFRJ). http://www.dgei.ufrj.br
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